O Legado de Malcolm X

Por: Ahmed Ismail

A histórica figura de Malcolm X marcou de forma indelével a trajetória dos afro-americanos em sua luta pelos direitos civis. Ainda que a visão liberal do sistema vigente por muito tempo tenha propositadamente tentado obscurecer a grandeza e a importância de sua contribuição, identificando sua mensagem com um radicalismo intolerante, o povo afro-americano manteve seu reconhecimento e sua reverência a Malcolm X como um autêntico líder, no mesmo patamar que se encontra o Sr. Martin Luther King.

Malcolm Little nasceu em 19 de maio de 1925 em Omaha, Nebraska. Seu pai, um pastor batista, era seguidor de Marcus Garvey e de sua Associação Universal para o Progresso dos Negros. Aos 6 anos, um grupo de racistas assassinou seu pai em virtude de sua ativa militância e denúncia dos crimes contra os cidadãos negros. A dissolução familiar com a subseqüente demência de sua mãe, conduziu-o a uma vida difícil em que sentiu por toda sua infância e adolescência o peso da discriminação e do desprezo que a sociedade branca nutria pelos negros. Passo a passo Malcolm trilhou o caminho da marginalidade e das drogas, vivenciando todo o processo corruptor que tragava sua geração e seu povo. Em fevereiro de 1946 foi sentenciado à prisão em Massachusets e cumpre 6 anos e meio de cárcere. Neste ínterim, mantém contato pela primeira vez com o Islamismo por intermédio de seu irmão, em 1948 adota o Islam como religião.

Esse período de prisão foi de grande valia para Malcolm, em que pôde refletir sobre a condição do cidadão negro e as razões de sua condição social. A situação dos afro-americanos se arrastava por décadas, marcada pela humilhação imposta pela segregação. Uma cotidiana humilhação que proibia mesmo a um cidadão negro o acesso a escolas, universidades e cargos públicos. Em algumas cidades aos negros eram reservados bancos especiais na parte traseira dos ônibus, banheiros públicos e cafés. Organizações racistas agiam contra os negros sem que as autoridades tomassem qualquer providência.

Em agosto de 1952, é posto em liberdade condicional. No ano seguinte, muda o seu nome para Malcolm X e assume o posto de assistente de ministro no templo número 1 da Nação do Islam de Elijah Mohammad em Detroit. Em junho de 1954 torna-se ministro do templo do Harlem em Nova York. Sua verve de orador e seu carisma aliados a seu discurso radical logo o levaram a uma posição de destaque na organização, se por um lado isso contribuiu para que o movimento crescesse junto com o seu prestígio no meio da população negra, por outro, acendeu o ódio dos racistas brancos contra ele e a forte reação do sistema a suas idéias.

Em 1959 Malcolm faz sua primeira viagem à África e ao Oriente Médio. Em 1960, recebe Fidel Castro no Harlem. Em maio de 1962 dirige uma campanha em Los Angeles em defesa de membros da nação do Islam que tinham sido agredidos pela polícia e falsamente acusados de assalto.

O ano de 1964 marcou seu rompimento com Elijah Mohammad devido aos desvios morais deste, Malcolm que havia sido por anos o porta-voz oficial da Nação do Islam, depois de constatar a veracidade das acusações contra seu líder anuncia publicamente seu afastamento da organização e a fundação da Muslim Mosque Inc (Mesquita Muçulmana).

Malcolm se opunha à todas as forças de Washington, os partidos Republicano e Democrata. Jamais cedeu ao nacionalismo americano, nem sequer às suas variantes patrióticas e populares, que eram tão atrativas para os dirigentes pequeno-burgueses das organizações dos oprimidos.

Declarou em Cleveland em abril de 1964: “Eu não sou norte-americano. Sou um dos 22 milhões de negros que são vítimas do norte-americanismo. Eu falo como vítima deste sistema e vejo os Estados Unidos com os olhos de vítima. Não vejo nenhum sonho americano, vejo um pesadelo americano”.

No encontro de fundação da Organização para a Unidade Afro-Americana em junho deste mesmo ano, Malcolm disse: “Digam-me que tipo de país é este? Porque temos que fazer os trabalhos mais duros pelos salários mais baixos? Eu digo a vocês por que… temos um sistema podre. É um sistema de exploração, um sistema político e econômico de exploração, de humilhação, de degradação, de discriminação direta…”

Ele se negava a chamar o Governo e as forças armadas dos Estados Unidos de “nosso” governo ou “nosso” exército. Esta postura política contribuiu para que ganhasse a inimizade de quase todos os demais líderes importantes que advogavam os direitos dos negros e mesmo de muitos dos esquerdistas.

A partir de seu rompimento com Elijah Mohammad e de suas sucessivas viagens, sua visão da causa que defendia transformou-se pouco a pouco, ele que inicialmente propagava o separatismo negro e concepções de raça que rechaçavam qualquer diálogo com os brancos, passou a refletir com maior clareza sobre os postulados islâmicos, sobretudo após sua peregrinação à Mecca. Ele se viu atraído cada vez mais à idéia de participar de diversas lutas pela igualdade de direitos. Malcolm frisou a necessidade de organizar a auto-defesa em resposta a ataques de grupos racistas violentos como a Ku-Klux-Klan e o Partido Nazi. Neste ponto, ele se opunha a posição pacifista do Sr. Martin Luther King e de seus partidários.

Em seus pronunciamentos Malcolm freqüentemente abordava sobre o fator psicológico e cultural que alimentava uma ideologia de inferioridade entre muitos cidadãos negros, denunciava o quanto lideranças ilegítimas contribuíam para essa situação. Com efeito, seu discurso buscava demonstrar como o sistema corrompia o homem negro levando-o à degradação espiritual, moral e física. Ao mesmo tempo, Malcolm jamais deixou de incentivar as pessoas a se auto-valorizarem, a exigirem seus direitos, a se instruírem a fim de atuarem de maneira organizada e principalmente a não se deixarem intimidar pelos racistas.

Em 12 de março de 1964 declarou: “Devemos ser pacíficos e respeitar a lei, porém chegou a hora de que o negro norte-americano lute em defesa própria sempre e onde quer que seja atacado injusta e ilegalmente. Se o governo considera que faço mal em dizer isto, então tem que começar a desempenhar suas próprias responsabilidades.”

Malcolm tinha perfeita consciência de que a emancipação do homem afro-americano era uma obra a ser realizada por ninguém mais senão pelos próprios negros, que esta tarefa não caberia a seus líderes e tampouco às ações políticas de Washington. Entretanto, ao adquirir autonomia a frente de seu próprio movimento ele se abriu ao diálogo com as principais lideranças negras de outros credos convocando-os a deixar de lado suas diferenças para o empenho em uma ação efetiva e conjunta. Em 3 de abril de 1964, num encontro com alguns desses líderes ele expressou sua posição dizendo: “Porém, ainda que seja muçulmano não vim aqui esta noite para falar sobre minha religião. Não vim para discutir nem polemizar sobre nenhuma das coisas em que discordamos, porque é hora de superar nossas diferenças e darmos conta de que é melhor para nós ver primeiro que temos o mesmo problema, um problema comum que te faz viver num inferno quer você seja um batista, um metodista, muçulmano ou nacionalista. Bem, que falemos assim não quer dizer que estamos contra o branco, mas sim, que estamos contra a exploração, que estamos contra a degradação, que estamos contra a opressão. E se o branco não quer que sejamos anti-brancos, que deixe de nos oprimir e nos explorar e nos degradar… (…) Então digo que ao predicar o nacionalismo negro não nos propomos a fazer com que o branco valorize o negro, mas sim que o negro valorize a si mesmo. Não há como fazer o branco mudar suas idéias. E todo esse assunto de apelar a consciência moral dos Estados Unidos… A consciência moral dos Estados Unidos está falida. Faz muito, muito tempo que perdeu toda consciência. O tio Sam não tem consciência. Eles não sabem o que é moral. Não tratam de eliminar o mal porque seja um mal nem porque seja ilegal tampouco porque seja imoral; o eliminam somente quando ameaça sua existência. De maneira que estão perdendo tempo se apelarem a consciência de um homem que está em bancarrota moral como o Tio Sam”.

A sinceridade e a firmeza de propósito de Malcolm se fazia presente quer seja nos púlpitos ou palanques e fora deles. Quem o ouvia e o conhecia não alimentava nenhuma dúvida quanto a integridade de sua ação e a coerência de seu discurso.

Muito embora suas posições radicais (especialmente do período de militância na Nação do Islam) tenham mesmo afastado possíveis colaboradores, é inegável que a situação daquele momento histórico exigia exatamente aquilo de um homem íntegro como Malcolm.

Tão surpreendente quanto a sua trajetória de uma vida em ruínas para a condição de homem regenerado, foi a sua capacidade de revisar suas idéias e de aprimorar seus princípios, superando as amarguras e ressentimentos pessoais (absolutamente justos) para afirmar com plena convicção sua condição de muçulmano, de combatente pela verdade e pela justiça. Quando da ocasião de seu retorno do Hajj (peregrinação a Mecca) Malcolm escreveu uma carta a seus assistentes na recém-formada Mesquita Muçulmana no Harlem, a mesma carta foi distribuída à imprensa e marcou o início de uma nova etapa em sua militância política. Eis um trecho dessa carta:

“Sei que quando minha carta se tornar pública na América, muitos ficarão atônitos, entes queridos, amigos e inimigos. Não menos atônitos ficarão milhões que eu não conheço e que lucraram muito durante meus doze anos com Elijah Mohammad, como uma imagem “odiada” de Malcolm X. Mesmo eu fiquei atônito. Mas havia precedentes em minha vida para esta carta. Toda minha vida tem sido uma cronologia de mudanças. Eis o que escrevi… de coração: “Nunca testemunhei tão sincera hospitalidade e espírito irresistível de verdadeira fraternidade como a que é praticada por pessoas de todas as cores e raças aqui nesta Terra Sagrada, onde há a casa de Abraão, a lembrança de Mohammad e de todos os outros profetas das escrituras sagradas. Por toda semana passada fiquei consternado e encantado pela graça exposta ao meu redor, por pessoas de todas as cores. Fui abençoado por visitar a Casa Sagrada de Mecca. Efetuei as sete voltas ao redor da Caaba, orientado por um jovem guia chamado Mohammad. Bebi água do poço de Zam Zam. Percorri por sete vezes a distância entre as duas colinas de Safa e Marwa. Orei na antiga cidade de Mina e orei no Monte Arafat. Havia dezenas de milhares de peregrinos, de todas as partes do mundo. Eram de todas as cores, de olhos azuis, de loiros a africanos negros. Mas estávamos todos participando do mesmo ritual, mostrando um espírito de unidade e fraternidade tal que minhas experiências na América me levaram a crer que nunca existiria entre o branco e o não-branco. A América necessita compreender o Islam, porque esta é a única religião que apaga da sociedade os problemas raciais. Através de minhas viagens pelo mundo islâmico encontrei, conversei e comi com pessoas que na América seriam consideradas brancas, mas a atitude de brancos foi removida de suas mentes pela religião do Islam. Nunca tinha visto uma fraternidade sincera e verdadeira praticada por pessoas de todas as cores ao mesmo tempo, independente de sua tez.Vocês ficariam chocados por essas palavras vindas de mim, mas, nesta peregrinação, o que eu vi e experimentei forçou-me a reformular muitos dos meus padrões de pensamento, previamente assumidos, e de jogar fora algumas das prévias conclusões. Isto não foi muito difícil para mim. A despeito de minhas firmes convicções sempre conservei uma mente aberta, necessária para a flexibilidade que deve andar de mãos dadas com toda forma de pesquisa inteligente pela verdade. Durante os onze dias que passei no mundo islâmico, comi no mesmo prato, bebi do mesmo copo e dormi na mesma cama (ou no mesmo tapete) enquanto orava para o mesmo Deus com companheiros muçulmanos, cujos olhos eram do mais azuis, cujos cabelos eram dos mais loiros e cuja pele era a mais branca… Pude deduzir disso que talvez se os brancos americanos aceitassem a unicidade de Deus, então talvez, pudessem aceitar, na realidade, a unicidade do homem e cessassem de medir, impedir e injuriar outros em termos de suas diferenças de cores. Louvado seja Deus, o Senhor do Universo. Sinceramente, Al Hajj Malik Al Shabbaz (Malcolm X)”.

Essa digna tomada de posição de Malcolm apesar de dar a seu movimento um sentido de grandeza e de verdadeiro caráter revolucionário indispôs contra ele muitos dos seus antigos aliados, que passaram a vê-lo injustamente como um traidor da causa. Elementos ligados à Nação do Islam de Elijah Mohammad, que defendiam a intolerância radical aos brancos não esconderam seu forte repúdio a essa mudança. Malcolm sabia que mais do que nunca sua vida corria perigo.

De 6 a 13 de fevereiro de 1965 viaja a Inglaterra e sua entrada na França é proibida pelas autoridades daquele país. Na madrugada de 14 de fevereiro uma bomba incendiária destrói sua casa. Dois dias depois num encontro na Igreja Metodista Corn Hill declara que morrerá sendo muçulmano porque é a única religião que defende a verdadeira justiça.

Em 21 de fevereiro de 1965, Malcolm é martirizado a tiros em seu púlpito durante uma pregação. As investigações sobre os responsáveis sobre o seu assassinato permanecem inconcludentes. A hipótese de elementos ligados a alguma das facções extremistas com a conivência do FBI é a mais plausível.

De qualquer modo, seu assassinato desencadeou uma onda de revoltas que se intensificaram mais ainda com o assassinato do Sr. Martin Luther King três anos depois, acelerando o processo de aprovação de leis anti-segregacionistas.

A dimensão da importância de Malcolm para os afro-americanos das décadas seguintes só pode ser definida com uma palavra: Herói. Herói dos nobres ideais de liberdade e dignidade. Sua mensagem ecoa no auto-respeito que os militantes negros evocam. A mensagem de Malcolm, seus exemplos e palavras permanecem. Sua vida é um importante referencial para todos os que lutam contra a opressão e a tirania em todo o mundo.

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