Líbano 2006: A Derrota Moral da Força

Por: Ahmed Ismail.

Ao se completar um ano da agressão israelense ao Líbano, a lembrança dessa vergonhosa e desastrada ação militar parece pouco a pouco ser inserida no arquivo morto da consciência do Ocidente. Tanto para os ativos apoiadores de Israel (seus colaboradores diretos) quanto para as potências que se omitiram e lavaram as mãos diante da agressão unilateral contra um país soberano, os que engoliram mais uma vez os pretextos de Israel, um ano já é suficiente para se esquecer aquilo que, para eles, não foi senão mais um ato na peça da “política necessária” para o Oriente Médio.

Há de se acrescentar a este “esquecimento” a incômoda constatação de que os resultados da “tentativa de Limpeza” perpetrada por Israel foram claramente adversos. A encenação hipócrita de preocupações ocidentais com a democracia e a soberania do Líbano, desde o atentado contra Hariri, foi desmascarada nos trinta e dois dias em que o país foi arrasado pela maior força militar da região sem que a comunidade internacional se dispusesse a defender o direito de soberania dos libaneses. Esta, que foi apenas mais uma da longa lista de traições do Ocidente ao mundo árabe demonstra a razão real para a impossibilidade de uma paz duradoura no Oriente Médio.

A alegação oficial do governo israelense que serviu como justificativa para a agressão foi a represália ao sequestro de dois militares pelo Hizbuallah, na região conhecida como fazendas de Chebaa. Um pequeno território cedido pela Síria ao Líbano em 1951 e ocupado por Israel na guerra dos Seis Dias. O argumento em si era um tanto falacioso desde que o sequestro de soldados de ambos os lados (e de civis libaneses por Israel) é bastante comum na região. Em circunstâncias normais, isto é, em que os interesses geopolíticos dos Estados Unidos e de seu principal aliado na região não estivessem envolvidos, a lógica do direito internacional prevaleceria e este esdrúxulo pretexto para agredir um país soberano não seria aceito. O fato concreto é que os militares foram sequestrados numa área ocupada, numa ação militar de um grupo resistente contra um força militar invasora. Mas, como sabemos, o direito internacional, os tratados e os tribunais internacionais são instituições perante as quais EUA e Israel não se submetem. Ao contrário, se caracterizam por seu desprezo a tudo isso, ainda que façam absoluta questão que todas as outras nações (especialmente as que consideram “nações inimigas”) cumpram à risca as exigências das convenções e acordos internacionais.

De um modo ou de outro, o governo israelense decidiu levar a frente a agressão que mais tarde seria criticada e denunciada por uma Comissão Especial como um grande erro estratégico-militar. Confiando plenamente em sua imensa superioridade bélica e tecnológica, Israel se empenhou por 32 dias na tentativa de eliminar a resistência islâmica do Hizbuallah. Entretanto, desde o início ficava bem claro que o pretexto israelense não era aceitável e nem racional. A complexidade das operações e a força militar envolvida deixava evidente a intenção de destruir o Líbano inteiramente. De fato, o alvo israelense ia muito além de executar um ato de punição à guerrilha islâmica: arrasar o país num ataque a todas suas grandes cidades e a toda sua infra-estrutura. As potências e particularmente o Conselho de Segurança da ONU de certa forma assistiram a agressão envolvidos pela retórica e os sofismas de Israel e da Casa Branca. Efetivamente, o Conselho foi paralisado pela pressão e influência dos EUA que truncou e impediu toda tentativa de se adotar uma resolução que ao menos refreasse a agressão israelense.

Em recente entrevista a BBC o ex-embaixador americano na ONU, John Bolton, declarou que o governo americano não tomou qualquer decisão de pressionar Israel por um cessar-fogo “porque não estava claro que as operações militares haviam falhado em atingir seus objetivos.” Segundo Bolton, “Washington deliberadamente resistiu a todos apelos por um cessar-fogo”. Bolton durante a entrevista não disfarçou o sentimento de decepção da Casa Branca em vista do fracasso israelense em arrancar pela raiz o que ele chamou de “ameaça militar do Hizbuallah”. Suas declarações surpreenderam o ministro inglês de relações exteriores Kim Howells. Este último parece reagir como se não soubesse até que ponto que a política externa de seu próprio país reflete a conivência com esta mentalidade de banditismo internacional. O desprezo de Washington para com as vidas dos civis libaneses colocados na linha de fogo é apenas mais um traço dessa mentalidade, a qual parte do princípio de que tem o direito de fazer valer sua vontade a qualquer preço e em qualquer lugar do planeta.

Enquanto a máquina de guerra israelense punha em prática a “punição coletiva” ao Líbano e a seu povo, uma outra curiosa estratégia ganhava corpo no campo midiático. Israel e o governo americano respondiam a pressão da opinião pública mundial com um discurso orquestrado e que foi continuamente repetido pelos órgãos da grande mídia ocidental de que “a culpa da tragédia se abater sobre o povo libanês era única e exclusiva do Hizbuallah”. Durante todo o tempo da guerra a grande mídia tentou convencer a opinião pública do ocidente de que o Hizbuallah era o culpado do que acontecia e que a sua recusa em se render condenava o Líbano àquele terrível destino. Entretanto, em nenhum momento Israel sequer tentou ser coerente com sua retórica; inexplicavelmente atacava áreas habitadas por civis, bairros cristãos e até igrejas enquanto dizia que estava a combater o Hizbuallah e não o povo libanês.

Uma vez que a resistência islâmica não dava sinais de arrefecer e demonstrava poder de fogo suficiente para atingir o território isralense, mais e mais a grande mídia, com honrosas exceções, tentava demonizar o Hizbuallah como um bando de fanáticos renitentes culpando-os pela guerra. Porém, a reação da opinião pública ao drama do povo libanês em grande medida serviu para calar e mesmo desmoralizar os que mantinham este discurso.

Há um limite para a desfaçatez e para o sofisma. Iniquidades como a invasão do Iraque, a manutenção de prisões como a de Abu Ghraib e Guantanamo e esta agressão irracional não podem ser defendidas senão ao preço da perda credibilidade. A tentativa de culpar o Hizbuallah pela guerra fracassou tanto quanto a tentativa israelense de eliminá-lo. O respeito e a admiração pela resistência islâmica libanesa não só se estabeleceu de modo definitivo por todo o mundo árabe-islâmico como também se verificou em outras partes do mundo uma nova perspectiva para o debate sobre o que realmente desestabiliza a região do Oriente Médio.

Dados oficiais apontam o trágico saldo da guerra de 1.373 libaneses mortos, dos quais 1.123 eram civis, 30% deles crianças menores de 13 anos; e 250 militantes da resistência islâmica; 117 militares israelenses e 43 civis.
A infra-estrutura do Líbano foi seriamente danificada e com o vazamento de óleo nas usinas térmicas libanesas provocaram-se desastres ambientais no litoral que ainda não foram sanados.

O uso criminoso de bombas de fósforo e de dispersão por parte de Israel, armamentos que a legislação internacional proíbe, foi um outro ato vergonhoso desta peça de terror que ainda vitima inocentes em várias partes do país. Algo que para o Ocidente é muito fácil e conveniente de se legar ao esquecimento.

Um ano após a guerra o Líbano é uma nação em reconstrução. As admiráveis força, fé e coragem de seu povo superarão com o amparo de Deus mais esta tragédia. O Líbano e seu povo não são dignos de pena, dignos de pena são aqueles que supõem que pela força e pela brutalidade possam vencer a determinação humana de lutar por um ideal de justiça.

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