Da Natureza das Leis e a Distinção da Shariah Divina

Por: Ahmed Ismail

A vida em sociedade, que se impôs como uma necessidade para o homem desde os primórdios, exigiu o estabelecimento de códigos que possibilitassem um razoável equilíbrio entre as aspirações, inclinações e objetivos dos indivíduos.

Diante do fato de que cada indivíduo de uma comunidade necessita da colaboração de outrem para uma plena satisfação de seus interesses básicos (e que isto é essencialmente o sentido da vida em sociedade), as leis se fizeram necessárias para garantir direitos e deveres e refrear o individualismo e os desequilíbrios originados pelas diferenças naturais tanto das potencialidades físicas e mentais quanto da índole e dos interesses pessoais. Assim, em todas as épocas e sociedades códigos de leis e regras sociais foram elaborados com o fito de superar essas dificuldades e desafios inerentes a natureza humana e da vida em sociedade. Muito embora esse objetivo original esteja presente em todo e qualquer código de leis, apresentou-se um dilema prático que sempre se ergueu como um obstáculo entre a lei e o virtual estabelecimento da justiça.

Em todas as sociedades ainda que de modo variado, a lei se tornou um instrumento de dominação na mão de um indivíduo ou de uma classe, e isso aponta para uma inquietante questão: a razão humana é capaz de produzir um código de leis que reflita com perfeição a justiça e que possa de fato estabelecê-la? Se analisarmos os códigos de leis produzidos em todos os tempos pela razão humana, encontraremos em todos eles duas limitações básicas:

– Nenhum código de leis encontrou respostas práticas para todas as questões da vida humana e que se provasse aplicável de modo atemporal.

– Nenhum código de leis pôde garantir total isenção e imparcialidade perante o conflito de interesses e os desequilíbrios sociais gerados pelas desigualdades, fossem as naturais ou as resultantes das violações dos direitos.

Estas duas limitações se originam de uma mesma fonte: os legisladores como seres humanos, também não estão livres das mesmas condições naturais que produzem os desequilíbrios e por mais brilhantes que sejam intelectualmente, não estão isentos de equívocos (o que torna uma determinada lei aplicada num tempo injusta ou obsoleta em outro). É considerado o objetivo máximo das leis garantir ao homem o bem-estar, o que é compreendido como o bem estar da sociedade como um todo. Infelizmente os muitos códigos de leis produzidos pela razão humana se mostraram incapazes de garantir este bem estar desde que jamais superaram as limitações mencionadas.

A shariah (lei divina) se fundamenta nesse mesmo objetivo. Allah, o Altíssimo, não estabeleceu suas leis senão para a felicidade do ser humano. O Alcorão apresenta esse propósito divino manifesto nos seguintes versículos sagrados:

“De que Ele o criou? De uma gota de esperma, criou-o e modelou-o e então, suavizou-lhe o caminho…” (80: 19 e 20)

Estes ayát detalham fases distintas do plano divino relativo ao ser humano. “suavizou-lhe o caminho” isto é, no que se refere a sua vida terrena Allah Exaltado Seja, proporcionou-lhe todos os recursos e meios para uma vida digna e plena, dentre os quais se encontram as diretrizes e leis divinas para que os indivíduos e as sociedades humanas encontrassem felicidade e bem-estar. Assim, a Orientação é parte integrante desse plano divino e de modo similar a criação, não há lugar nela para erro ou contradição. Da mesma maneira como Allah destinou uma medida certa para cada coisa existente, no que diz respeito a suas Leis, Ele dotou-as de uma correta medida e alcance, tornando-as perfeitas e aplicáveis em todos os tempos e sociedades.

Enquanto a razão humana não é apta para criar leis capazes de suprimir as diferenças e os desequilíbrios (mas apenas no melhor dos casos obter um relativo controle sobre as mesmas) pelo simples motivo que é a própria razão humana que cria e conduz o homem para essas diferenças e desequilíbrios. O plano divino por sua vez, sendo ele próprio uma Causa Única, não gera dois efeitos contraditórios. O plano divino estabeleceu leis, porém, não restringiu o livre-arbítrio humano, mas sim, elegeu a razão como um fator de dedução e escolha.

A natureza intrínseca das leis divinas desde que provêem de Allah é a do perfeito conhecimento de todos os aspectos da realidade e da natureza humana. A Shariah (lei divina) se estabelece sobre esse conhecimento global sobre o homem e as circunstâncias que o cercam.

Tomemos como exemplo a lei divina que proíbe toda e qualquer negociação ou empréstimo envolvendo a cobrança de juros. Essa proibição não está baseada em meros efeitos evidentes ou inconvenientes temporais que esta prática possa acarretar na sociedade.

O veredicto divino se estabelece partindo do conhecimento abrangente da natureza humana e de suas inclinações e também dos efeitos sociais num nível muito mais complexo do que de uma situação temporal. É esta natureza que confere à Shariah sua condição de imutabilidade concomitante, a sua capacidade de aplicação em qualquer tempo ou sociedade.

Um outro aspecto que diferencia os códigos de leis originados da razão humana da Shariah divina é que mesmo os códigos mais avançados não são capazes de deter autonomia sobre os costumes e distorções sociais. Via de regra sucumbem ante eles, deixam de ser diretrizes para a sociedade e se tornam legitimadores das conveniências e inclinações por mais deletérias que sejam estas. É interessante notarmos também como se estabelecem de modo diferente as relações entre a lei humana, a lei divina e o Estado. Num estado laico, a lei é posta a serviço do próprio estado e se confunde com este. No caso de um estado verdadeiramente islâmico, a Shariah o controla e está acima dele e de seus governantes, é ela que lhe confere o status de estado islâmico por excelência.

Na realidade, sempre que a lei se torna um instrumento de dominação seja de um Estado, de um governante ou de uma classe específica, sua conexão com a Justiça (sua meta última) está comprometida, desse modo, é manipulada para promover a corrupção, garantir privilégios, oprimir e punir sem nenhuma consideração pela justiça e a garantia dos direitos exceto quando a justiça favoreça os mais fortes e os direitos destes devam ser assegurados.

No que se refere à Shariah divina, ela própria reflete a justiça no seu sentido mais completo. Evidentemente, esse caráter de Justiça por Excelência é um atributo da Shariah em si (num sentido geral, universal), pois os pareceres e decisões inferidas pelos juízes e jurisprudentes decorrem da compreensão pessoal destes quanto à Lei Divina, e podem em casos particulares apresentar um descompasso com o que seria mais justo e correto.

Mesmo nos tribunais islâmicos mais imparciais e capacitados podem eventualmente ocorrer erros (o que de modo algum tem relação com a perfeição da Lei Divina). Contudo, os mecanismos judiciais de uma corte islâmica permitem diminuir essa margem ao mínimo, com especial cuidado naquelas questões de maior gravidade que envolvem punições. Nenhum veredicto pode ser levado a efeito enquanto sobre o qual haja qualquer probabilidade de dúvida. O Imam Ali Amr al Muminin (A.S.) sobre essa questão disse: “Não se constitui em justiça o promulgar um veredicto, fundamentando-se na probabilidade.” Porém, o caráter educativo da Shariah produz na sociedade uma série de fatores preventivos às violações dos direitos, que superam a alçada dos tribunais criando uma condição social exatamente inversa à predominante nas nações regidas por códigos de leis humanas, nas quais os problemas e transgressões se avolumam de modo progressivo, por mais coercitivas que sejam as leis.

«
»