Da Licitude do Casamento Mutah

Extraído do ensaio de Allamah Muhammad Hussain Al Kashiful Ghita
Tradução: Ahmed Ismail

O casamento Muta’h se fundamenta na menção do Alcorão:

“CONCEDEI O DOTE CONVENIADO ÀQUELAS COM QUEM O TENHAIS ESTABELECIDO.” (NISA’A V. 24)

O termo “istamtâtum” (que tenhais estabelecido muta’h) tem dois significados: Pode significar “aproveitamento” ou busca de satisfação (que é o significado original para o qual foi disposta a expressão), ou pode referir-se ao tipo de contrato matrimonial cujo prazo de vigência é determinado (sendo este significado uma acepção adotada pela Shariah). Não é possível aqui que se refira ao primeiro significado por dois motivos:

1 – Os eruditos da ciência do Usul al Fiqh são unânimes em que se uma palavra do Alcorão tem dois significados sendo um deles disposição original do idioma e o outro acepção usada pela shariah deve impor-se o segundo, sendo por isso que para palavras como Saum e Hajj adota-se os sentidos Jejum e peregrinação e não o literal “abstinência e visita”.

2 – Pessoas renomadas dentre os Companheiros e os tabi’in aceitavam-no como PLENAMENTE LÍCITO entre os quais se contavam Ali Ibn Abu Talib (A.S.), Ibn Abbas, Ibn Mas’ud, Mujahid, Jabir Ibn Abdullah, Salamah Ibn Awqa’, Abu Said Khudri, Al Mughirah Ibn Shubah, Said Ibn Jubair, Ibn Jarir entre outros.

Entretanto, esta modalidade de matrimônio atualmente é particular da escola Xiita que sustenta a permanência de sua legalidade e sua não-abrogação. A controvérsia sobre o tema se estende desde os tempos dos companheiros do Profeta (S.A.A.S.).

Sem dúvida, ninguém que tenha o mínimo de conhecimento sobre a Shariah nega que o Muta’h em sua condição de contrato matrimonial por tempo determinado, foi legislado pelo Mensageiro, que o permitiu. Atuando com base nisso, os companheiros durante a vida do Profeta adotaram-no e inclusive anos depois de seu falecimento. Grandes exegetas do Alcorão como Abdullah Ibn Abbas, Amran ibn Al Hasin, Ubai Ibn Kubai, Jabir Ibn Abdullah ditavam sua licitude e ao explicarem o versículo citado comentavam que a explicação que aprenderam do Profeta era “até o tempo conveniado”.

As vozes discordantes quanto a sua licitude atual reivindicam que teria havido uma posterior ab-rogação e proibição. Porém, neste ponto, para concluir ab-rogação surge uma discrepância que resulta da falta de uma prova categórica, posto que uma determinante só é demonstrada mediante tal prova.

Um primeiro grupo de discordantes pleiteiam que o Muta’h tenha sido ab-rogado pelo próprio Alcorão; dentre estes, há os que sustentam que o Ayat determinante desta ab-rogação foi: “QUANDO DIVORCIARDES DE VOSSAS MULHERES FAZEI-O POR SEUS PERÍODOS PRESCRITOS…” (AT TALAQ V. 1)

Outros que foi o ayat: “CORRESPONDE A VÓS A METADE DE QUANTO DEIXEM VOSSAS ESPOSAS…” (C.4. V. 12)

E outros ainda: “… EXCETO COM SUAS ESPOSAS OU O QUE POSSUAM SUAS DESTRAS…” (C.23 V.6).

Considero desnecessário explicar a inconsistência destas suposições já que estes ayát não se opõem de modo algum ao ayat do Muta’h para que sejam ab-rogadores. Além disso, a ab-rogação do ayat que cita o Muta’h mediante os ayát citados é algo impossível já que estes ayát se encontram em suras mecanas enquanto o ayat em questão se encontra em Sura Nisa’a, uma sura medinense , ou seja, revelada posteriormente.

Grandes sábios sunitas narraram que o ayat de muta’h não foi ab-rogado. Dentre eles se encontra Az Zamakh’xari que cita em Al Kaxxaf de Ibn Abbas que afirmava que este Ayat está entre os determinantes.

Um segundo grupo reivindica que a ab-rogação foi da parte do próprio Profeta, segundo narrativas recolhidas por Bukhari e Muslim, entretanto, aqui o caso se desconcerta insolitamente tomando feições discordantes, segundo tais narrativas contraditórias entre si, implicaria que o Muta’h foi permitido e proibido cinco ou seis vezes, e não somente 3 como menciona Nawawi e outros em Sahih Muslim.

A contradição se torna ainda maior quando encontramos outras das mesmas fontes que afirmam claramente que tal ab-rogação jamais aconteceu, vejamos por exemplo: No Sahih Bukhari figura o seguinte Hadith: “NOS NARROU ABU RAYA’ DE AMRAN IBN HASIN QUE DISSE: “FOI REVELADO O AYAT DE MUTA’H NO LIVRO DE ALLAH E ATUAMOS SEGUNDO ELE NA ÉPOCA DO PROFETA SEM QUE FOSSE REVELADO OUTRO AYAT PROIBINDO-O, COMO TAMBÉM NÃO O PROIBIU O PROFETA TAMPOUCO, ATÉ QUE FALECEU E UMA PESSOA EXPRESSOU SUA PRÓPRIA OPINIÃO, SE DIZ QUE FOI OMAR.”

No Sahih Muslim, em uma cadeia de transmissão que chega a A’ta que disse: “UM DIA EM QUE JABIR IBN ABDULLAH VOLTOU DE SEU UMRAH, NÓS FOMOS A SUA CASA. O POVO LHE PERGUNTOU UMA SÉRIE DE COISAS, ATÉ QUE MENCIONARAM O MUTA’H A RESPEITO DO QUAL DISSE: “ASSIM É, REALIZÁVAMOS O MUTA’H NA ÉPOCA DO MENSAGEIRO E NOS TEMPOS DE ABU BAKR E DE OMAR…”

Também do mesmo narrador se relata o seguinte: “FAZÍAMOS O MUTA’H COM BASE EM UM PUNHADO DE TÂMARAS E COISAS PEQUENAS DURANTE A ÉPOCA DO MENSAGEIRO E NA DE ABU BAKR, ATÉ QUE OMAR A PROIBIU EM VIRTUDE DO SUCEDIDO COM AMR IBN HARIZ”.

Ainda em Sahih Muslim se narra de Abu Nadrah que disse: “ME ENCONTRAVA COM JABIR IBN ABDULLAH E ALGUÉM CHEGOU E DISSE “IBN ABBAS E IBN AZ ZUBAIR DISCORDARAM A RESPEITO DOS DOIS TIPOS DE MUTA’H.” RESPONDEU JÁBIR: “ATUAMOS EM BASE DE AMBOS QUANDO ESTÁVAMOS COM O MENSAGEIRO, DEPOIS, OMAR NOS PROIBIU E NÃO VOLTAMOS A PRATICÁ-LO.”

Quem pesquisa este capítulo de Sahih Muslim se depara com o insólito da afirmação e da negação quanto a ab-rogação. As vezes se atribui a ab-rogação ao Mensageiro, outras a Omar, se confirma sua existência na época do califado de Abu Bakr; e se diz que Ali em várias ocasiões desautorizou a Ibn Abbas falar sobre o Muta’h.

Apesar de se contar isso, também se narra que Ibn Zubair proclamou: “Há pessoas as quais Allah cegou os corações assim como seus olhos (referindo-se a Ibn Abbas) que ditam a legitimidade do Muta’h” a isso Ibn Abbas respondeu: “Tu és um mal educado. Por minha vida, que em verdade o Mutah era aplicado na época do Imam dos tementes.”

Nas tradições legadas pelos Ahlul Bait (A.S.) abundam as narrativas que negam a proibição do Muta’h.

At’Tabari em seu tafsir Al Kabir cita de Imam Ali (A.S.) que disse: “SE OMAR NÃO TIVESSE PROIBIDO O MUTA’H ÁS PESSOAS, NÃO HAVERIA FORNICADO SENÃO O PERVERSO OU MESMO MUITO POUCOS.”

Seja o caso que for, de acordo com os princípios da jurisprudência não há dúvida de que se as narrativas se contradizem deixam de ser consideradas provas válidas, devem ser colocadas de lado e devemos atuar com base do que é determinante. Dessa maneira, depois de estabelecer-se por unanimidade dos muçulmanos sua inicial condição de legitimidade, se realiza Istishab (princípio de consideração de licitude do estado original de uma disposição diante da dúvida de sua alteração) para a permanência da norma e esta é a posição do fiqh Jafari (xia’h). Acrescentemos que algo que está no livro de Allah não pode ser considerado um juízo ab-rogado a partir de narrativas de cadeia de transmissão única, ou não suficiente para chegar ao status de “Tawatur” que brinda o conhecimento conclusivo e categórico.

Se queremos esclarecer o assunto da forma conveniente, devemos investigar a causa dessa confusão.

O califa Omar realizou seu próprio Ijtihad com base no que lhe parecia conveniente para os muçulmanos de seu tempo. Ele considerou que essa conveniência implicava em proibir o Muta’h de uma maneira civil e não religiosa por uma contingência temporal. Narra-se que disse: “Haviam dois muta’h na época do Mensageiro que eu proíbo e castigo quem o praticar.”

Note-se que ele não disse que o Profeta teria proibido ou ab-rogado mas sim que ele próprio o proibia. A proibição de Omar só poderia ser a título temporário e como uma disposição civil e não religiosa pois certamente Omar não pode ter pretendido proibir o que Allah permitiu, nem introduzir na religião o que não faz parte dela, ademais ele sabia que o lícito de Mohammad é lícito até o Dia do juízo. Entretanto alguns de seus contemporâneos e outros que os sucederam dentre os narradores de mente simples, não souberam precisar esse sutil ponto. Omar proibiu o Muta’h em virtude de um caso particular que o importunou, em razão que lhe pareceu o mais correto para a comunidade “naquele momento” a fim de evitar excessos.

Al Hilli um dos grandes sábios imamitas diz textualmente em seu livro Sara’ir: “Muta’h é lícito na lei islâmica; está permitido e legislado no livro de Allah e na tradição Mutawatir do Profeta, isso é algo sobre o que existe unanimidade entre os muçulmanos, só que alguns reivindicam sua posterior ab-rogação, porém isso carece de algo que o corrobore, sem o que não se considera a essa reivindicação senão uma leviandade.”

Além disso, comprovados indícios demonstram que qualquer conveniência que não ocasione nenhum tipo de prejuízo neste ou no outro mundo é lícita pelo juízo da razão, ocorrendo isto quanto a questão do Muta’h.

Quanto as narrativas que citam que o Profeta tenha proibido o Mutah se responde que, todas essas narrativas são de transmissão única sem se considerar o fato de sua condição refutável por débeis e não confiáveis. Narrativas de transmissão única não possuem o îlm qatî (conhecimento categórico) no que se refere a Shariah e não podem regrar uma disposição jurídica.

Sob o aspecto moral e social acaso não é o Islam a voz e a graça divina disposta á humanidade mediante a misericórdia? Acaso não veio para a felicidade do ser humano e não para atormentá-lo, para agraciá-lo e não para afligir-lhe? Acaso não é o Islam o din que marcha com a humanidade para regê-lo em todas as épocas, suprir suas necessidades e afasta-la da corrupção?

O Islam não veio para oprimir o ser humano nem impor sobre ele a dificuldade. Não há sob o ponto de vista islâmico nada de louvável em sofrer as agruras da abstinência. E quanto a prática da fornicação e da prostituição as quais se espalharam mundialmente, é certo que se os muçulmanos se apegassem as leis do Islam se verificaria o seguinte ayat: “E HAVERIAMOS OS AGRACIADO COM AS BENÇÃOS DO CÉU E DA TERRA.”

Entre essas leis se encontra o Muta’h. Se os muçulmanos a pusessem em prática, cerrariam-se as portas da fornicação, diminuindo-se sensivelmente, aumentariam os nascimentos legítimos e toda uma gama de benefícios morais a sociedade.

Um Breve Comentário do Tradutor sobre a Prática Judiciosa do Muta’h

Sendo ponto pacífico a legitimidade do Muta’h resta atentarmos para os princípios que o regulamentam.

Nas tradições fiéis consta que Imam Mussa Al Kadzim (A.S.) tenha dito a Ali Ibn Yaqtin: “QUE TENS TU A VER COM O CASAMENTO MUTA’H QUANDO ALLAH TE TORNOU CAPAZ DE PASSAR SEM ELE.”

A permissão legal do muta’h é apenas para o homem solteiro ou para aquele que esteja impedido de estar com sua esposa (por motivo de força maior). O que está casado em regime permanente e nada o impede de estar com sua esposa não tem o direito de estabelecer muta’h.

Um outro aspecto a ser citado é que há um princípio moral que rege as ações. O Islam declara que a pureza de intenção é fundamental para definir a pureza da ação, logo, ainda que seja lícito a alguém o mutah, se a sua intenção é a mera busca de prazer e de satisfazer seus desejos com uma mulher por um breve período e depois trocá-la por outra decerto que sua intenção é condenável perante Allah. Portanto quem quer que deseje recorrer ao mutah por algum motivo justo (a incapacidade de manter um casamento fixo por falta de recursos, por exemplo) deve examinar cuidadosamente suas reais intenções.

Se os muçulmanos abusarem daquilo que Allah lhes permitiu por direito, deverão encarar as conseqüências de seu abuso. O casamento em quaisquer regime (de tempo fixo e temporário) não foi instituído senão para que seja um sólido laço entre o homem e a mulher, e não para legitimar a promiscuidade e a leviandade entre eles.

O casamento é uma instituição sagrada e o divórcio é a exceção a regra, um direito a ser exercido em última instância. No Al Kafi consta que o Mensageiro de Allah tenha dito:

“ALLAH CONSIDERA SEU INIMIGO E CONDENA O HOMEM QUE GOSTA DE MUDAR DE ESPOSA, UMA APÓS OUTRA, ASSIM COMO A MULHER QUE GOSTA DE MUDAR DE MARIDO, UM APÓS O OUTRO”.

Com base neste e outros dizeres comunicados pelos Imames se depreende que o que abusa do Mutah e faz uso dele de modo irresponsável e leviano comete grave transgressão e pouco se diferencia do fornicador e do que espalha corrupção na terra. Que Allah nos inclua entre os que o temem e se mantêm dentro dos limites por ele estabelecidos.

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