Um Conflito de Religiões?

Por: Ahmed Ismail

Os discursos de Osama Bin Ladin apresentados ao mundo produziram diversas conclusões parciais e apressadas por parte de muitos analistas ocidentais. Ao se separar algumas de suas declarações de seu contexto e não aprofundar um questionamento sobre as mesmas, se cai no equívoco de reconhecer no seu sentido literal uma guerra aberta ao cristianismo, o que significaria uma guerra entre religiões.

O primeiro equívoco nesta questão se refere ao que se chama de “fundamentalismo” em relação ao que seja “autêntica tradição religiosa”. Esses dois elementos são distintos e jamais devem ser entendidos como uma única e mesma coisa.

Contudo, devemos a princípio considerar que o próprio conceito de guerra religiosa não encontra base no Islam, posto que o Alcorão não prega nenhum tipo de imposição da fé ou expansão pela coação. O equívoco nesse caso se refere a uma incorreta interpretação que identifica a civilização ocidental inspirada pela tradição cristã com o cristianismo ou a religião cristã. A civilização ocidental embora inspirada pela tradição judaico-cristã não representa a religião no seu sentido real. Os valores que nela predominam há séculos são valores absolutamente irreligiosos, resultantes de uma concepção materialista que se manifesta nos costumes, na política e nos modelos econômicos que a caracterizam.

Por conseguinte, é correto afirmar que o Islam se opõe de maneira radical a qualquer concepção de civilização que tenha por base valores irreligiosos e materialistas, e tal oposição pode se efetivar em um enfrentamento desde que esta civilização tente impor seus valores sobre a comunidade e as nações islâmicas. Neste contexto é que deve ser compreendido o Jihad; como uma reação defensiva dos valores e da religião islâmica, sendo que esse Jihad se torna justificado como guerra sempre que haja uma agressão militar ou o uso de medidas políticas e econômicas que visem a opressão de povos islâmicos, exercidas direta ou indiretamente, via um governo local a serviço da corrupção do Islam e dos muçulmanos. Ainda assim, cabe acrescentar que, o senhor Osama Bin Laden não tem qualquer autoridade para falar em nome dos muçulmanos do mundo, nem de convocar a um Jihad ou impor sua interpretação pessoal do Islam a quem quer que seja. O que, definitivamente, esvazia uma discussão de uma suposta “nova guerra santa”.

As teorias de “imperialismo liberal” nas quais se defende que as potências ocidentais devam se empenhar em propagar seus valores e sistemas político e econômicos às demais nações do mundo, conduzirão invariavelmente a um conflito constante porque o Islam por sua própria razão de ser, impõe como um dever à comunidade muçulmana a resistência a qualquer processo de aculturação e de descaracterização de sua identidade islâmica. Entretanto, não se deve incorrer no erro de adotar uma conclusão simplista que identifique nessa oposição conceitual o próprio espírito do “fundamentalismo islâmico”, o que significaria dizer que todo aderente dos valores islâmicos seria “um fundamentalista” e, portanto, um “adepto da intolerância religiosa”.

Tornou-se comum no ocidente rotular como “fundamentalista” todo e qualquer religioso (muçulmano, cristão, judeu, etc.) que defenda a aderência aos valores religiosos que se oponham aos costumes e aos valores em voga na chamada sociedade moderna. E este rótulo traz consigo conotações depreciáveis tais como “retrógrado, intolerante, preconceituoso”.

É bem verdade que há os “fundamentalistas” em todas as crenças religiosas que justificam esses adjetivos. Aqueles que em nome de certos princípios religiosos interpretados de maneira literal realmente adotam uma prática de intolerância para com os demais. Contudo, há também em todas as crenças os que apenas demonstram uma coerente aderência aos princípios e valores de sua religião sem que isso signifique uma posição de intolerância. Há um forte elemento de preconceito que leva muitos no ocidente a considerar essas duas tendências religiosas como sendo uma só coisa.

Um claro exemplo desse patrulhamento sobre os religiosos no mundo ocidental se verifica nas polêmicas estabelecidas em torno de questões como o aborto e o homossexualismo. É inegável que no Ocidente em razão de múltiplos fatores, existe hoje uma crescente tendência favorável à liberdade da prática do aborto e da aceitação do homossexualismo como uma “opção sexual”. A religião, sobretudo amplos setores católicos e protestantes, se posicionam contrários a essas práticas, e por essa razão sofrem uma constante campanha de descrédito e de menosprezo pela mídia, que se empenha em colocar a opinião pública diante de um impasse: a modernidade (o que entendem como sendo a modernidade) que seria a adoção de valores de liberdade individual de um lado, e do outro, o “atraso” “a intolerância” e o “preconceito” dos valores religiosos que se opõem à tendência geral da sociedade. Essa campanha de descrédito dos valores religiosos não raro utiliza certos setores das próprias religiões. Sacerdotes e teólogos ávidos por agradar a maioria e cair nas graças da mídia oferecem “interpretações mirabolantes dos textos” que, por exemplo, segundo eles, não se oporiam ao homossexualismo e a união de homossexuais. Alguns desses sacerdotes chegam mesmo a consagrar tais uniões.

Ao que parece essa tendência e esse patrulhamento sobre a religião deseja que os teólogos cristãos reinventem a prática e a fé religiosa que professam segundo o que pareça bom e aceitável para a sociedade. Este fenômeno nas sociedades modernas em relação à religiosidade ganha uma dimensão ainda maior quando se refere ao Islam.

Os princípios e os valores islâmicos que se demonstram imutáveis, seja no que diz respeito aos costumes ou a ordem social representam para o mundo ocidental um incômodo desafio. O conflito que se apresenta não é e nem deve ser entendido como um conflito entre religiões. As tradições religiosas do judaísmo, do cristianismo e do Islam possuem, em sua própria essência, valores semelhantes e podem perfeitamente estabelecer uma relação de tolerância e coexistência pacífica e respeitosa. Na realidade, são fatores externos (não de origem religiosa, mas sim política) que têm levado a um conflito que se traveste de um caráter religioso. O movimento sionista por exemplo, que é um movimento laico de objetivos puramente políticos, desde de seu início reivindicou para si um caráter “religioso” e em nome disso tem exercido o pretensioso papel de vanguarda ou liderança dos judeus do mundo. O fato é que o movimento sionista não é e nunca foi o Judaísmo. Se os muçulmanos do mundo lutam contra o sionismo isso não significa em absoluto que o Islam e os muçulmanos estão em luta contra o Judaísmo ou contra o povo judeu. Os embates entre a nascente comunidade muçulmana e algumas tribos judaicas na Península Arábica, que tiveram lugar nos primeiros tempos do Islam, se deveram mais às condições históricas do momento. Nos séculos seguintes, as relações equilibradas entre muçulmanos e judeus em territórios de domínio islâmico desmentem a existência de um conflito intrínseco entre as duas comunidades.

De maneira similar, as forças políticas e econômicas do capital, que se empenham em impor uma ordem mundial segundo seus interesses não representam o Cristianismo como tradição religiosa; e o Islam e os muçulmanos que se oponham a estas forças não estão em guerra contra a religião cristã, mas sim, contra uma civilização fundamentada em valores irreligiosos e materialistas que se utiliza do cristianismo apenas como uma máscara que oculta os seus torpes objetivos.

Apresentar o conflito como uma mera “luta entre religiões” é uma maneira astuciosa de desviar a opinião pública mundial das verdadeiras razões que produziram esta situação. Os setores islâmicos identificados como “fundamentalistas” são acusados de promoverem uma guerra santa contra o Ocidente, quando as raízes do conflito são essencialmente políticas e econômicas. O que pode ser definido como: uma civilização utiliza todos os meios que possa contar para impor sua visão de mundo, seus costumes, sua opinião e suas práticas a todos os demais povos. O papel dos chamados fundamentalistas sejam eles islâmicos, judeus ou cristãos é apenas e tão somente “reproduzir” e muitas vezes “radicalizar” um conflito já existente e que não nasce de meras diferenças religiosas. Do contrário, como poderia se explicar o fato de que grupos fundamentalistas cristãos, nascidos dentro do próprio Estados Unidos concentrem seus esforços não contra o Islam ou outra religião, mas sim contra o governo americano e todos os valores irreligiosos e materialistas que ele representa? Para esses grupos a “cruzada” não é contra tradições religiosas não-cristãs, mas contra aquilo que acreditam que seja um poder demoníaco que corrompe todas as religiões e que tem por objetivo último o domínio absoluto sobre todas as nações e povos do mundo.

A principal estratégia desse “poder” é manter-se e agir sempre em nome de algum ideal que seja caro a humanidade. Assim, assume o nome da “Civilização” ou o nome da “Cristandade” ou da “Democracia” ou da “Liberdade”. Todavia, esse poder de modo similar ao “terror” não tem uma face conhecida, seus verdadeiros articuladores e protagonistas não aparecem na imprensa, seus nomes não circulam nas discussões sobre o “quem está contra quem”, representam, na realidade, um poder por trás do “poder oficial” dos governos das principais potências do ocidente. Controlam o capital, as grandes corporações do mundo, a indústria bélica, os principais órgãos de mídia e imprensa do ocidente, a cúpula do sistema bancário mundial. Nos últimos 60 anos este “poder sem face” tem manipulado o xadrez geopolítico e o coração da economia mundial, tem promovido a destruição da moral e a degeneração dos costumes e da família e com isso afundado no caos sociedades e gerações inteiras. Sua insidiosa e subterrânea influência tem jogado nações contra nações, o seu sistema de usura internacionalizado possibilita arruinar e usurpar riquezas de qualquer país fora do círculo das nações que lideram esse sistema. Não tem pátria, mas o objetivo de possuir “todas as pátrias” e naturalmente “não tem religião” mas o objetivo de dominar e corromper “todas as religiões” e todas as sociedades.

Decididamente, esse conflito não pode em absoluto ser definido como uma guerra entre religiões.

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