Saudade, algo profundo dentro de nós partiu com o Sayyed Fadlallah

Com a partida do Sayyed Mohammad Hussein Fadlallah, você fica ciente de que algo mudou em sua vida para sempre, que a sua existência perdeu um gosto ou sabor especial em relação ao significado da verdade; você sentia isso e pensava que emanava de você. Então, descobre, depois da morte do Sayyed, que esse sentimento foi plantado no seu interior, por intermédio de suas palavras, que permeiam os ímpetos de sua mente, e de suas expressões, que entram em seu coração sem permissão.

Ouvir suas notícias, de perto ou de longe, fazia você se sentir sempre seguro. Era-lhe suficiente estar lá, conversando e recebendo pessoas, anunciando uma posição ou emitindo um parecer consultivo, o que fazia você se tranquilizar, pois seu direito estava protegido com a simples presença dele. Tinha-se a certeza de que o espaço de sua existência estava em expansão com cada ato e cada pensar dele, os quais ele compartilhava e dos quais você tinha a sua cota, fosse quem fosse, de tudo o que ele dizia e declarava. Na sua visão havia um mundo amplo, um horizonte acolhedor repleto de cores, convidando-nos a estar nele, como somos, sem a necessidade de alterar o nosso local, ou transferir-nos do círculo de uma fé particular para o círculo de outra fé. O mundo do Sayyed vinha até nós e nós não precisávamos viajar até ele. O seu toque humanitário – pelo qual ele pagou caro – estava, em qualquer lugar e tempo, nele.

Com o Sayyed, terminaram as guerras de crenças, o choque das religiões quanto à soberania suprema. Deixou de haver ateu no mundo, ou qualquer significado em dizer que alguém é impuro. A sua condição humana, com a qual Deus o criou à Sua imagem, era a pureza que nada torna impura.A sua humanidade era o milagre que fazia de qualquer um, em casos extremos de ateísmo expresso, um crente. A teologia cristã tornou-se para ele uma diligência na crença, pertencente ao conhecimento especial de Deus, o que tornava a sua divergência com o cristianismo sobre a ideia de Deus algo não distinto de sua divergência com qualquer outra doutrina islâmica. Aos olhos do Sayyed e do ponto de vista histórico, Deus está permanentemente presente por trás de todos esses sistemas que procuram a Sua existência, desde que seus defensores vivessem e sentissem a Sua presença na boa palavra em direção aos outros. O cristianismo penetrou, por intermédio do Sayyed, no recinto da fé dos muçulmanos, a partir de uma ampla porta aberta, em parceria de fé, cuja missão é aliviar a dor do mundo e dar sentido à sua vida, fazendo-a digna de ser vivida, mantendo a porta aberta, sem fechá-la em face de todas as religiões do mundo e seus seguidores. Ele nos deixou uma regra: “Viva sua humanidade e chegará a ver Deus”.

O Sayyed tinha todas as habilidades de persuasão, não falava sem ter precisão do argumento e, ao mesmo tempo, manejo quanto às provas. Ele não queria que você se submetesse a ele, mas o incentivava a discordar dele, a explorar as lacunas na ideia ou no ponto de vista defendido por ele. Não lhe era confortável receber elogios frequentes, e o agradava o desafio, que aumentava o nível de debate e de reflexão. Disse-nos na lógica do “Diálogo no Alcorão”: “O Alcorão foi revelado, na sua composição, em forma de diálogo e a base do diálogo constitui em diferenças, que podem alcançar o grau de contradição.”

Ele nos mostrou como o Alcorão transferiu, com fidelidade, o diálogo entre Deus e Satanás e a controvérsia entre os profetas e seus adversários, o diálogo do Profeta (1) com seus seguidores, sem preconceito de qualquer das partes. A disputa não significa a ausência dos participantes. É possível que, se for levada com lógica de discussão, como a lógica do Alcorão, torne-se uma fonte de fertilidade e criatividade. O humanismo de cada um é refletido, aos olhos do Sayyed, nos outros mais do que na sua simetria e identificação. A vida é enriquecida pela diferença, não pela congruência e semelhança. Ele sempre repetia as palavras: “Não encurralem os pecadores no canto, pois, dessa forma, irão incentivá-los a cometer mais pecados; mexam com a bondade inerente a eles”. Não devemos nos preocupar com o cheiro do animal morto, pois a beleza da brancura de seus dentes permanece.

Se estivesse de acordo ou discordasse do Sayyed, você continuava sob o seu manto e caminhava sob a sua proteção, sem precisar de um passaporte ou uma senha para entrar. Concordar com ele numa certa opinião é ingressar na linha na qual ele se antecipou em relação a nós. O não concordar com ele constituía-se em virtude para ele, porque passou a vida buscando proteger o nosso direito de emitir a nossa opinião livremente. Era o homem através do qual você acha que a sua opinião tem valor quando encontra uma testemunha ou um apoio, em palavras e ideias. Você daria a sua opinião um valor, vangloriando-se abertamente de que era diferente da opinião do Sayyed e, em ambos os casos, permaneceria cativo e em débito para com ele, porque era um berço em terra sólida a nos sustentar. Ele removia de nossas cabeças os sótãos que dobram e vergam a nossa mente e impedem que nossa visão atinja a borda do céu.

Ele foi acusado, uma única vez, “na sua religiosidade e no seu caráter”. Muitos hesitaram e se acovardaram em defendê-lo; muitos correram para atacá-lo, para unir-se à corrente montada contra ele e beneficiar-se da liquidação de contas privadas com ele. Mas, não foi necessário, então, alguém defender a credibilidade, a integridade e a fé do Sayyed. Ele se distanciou da controvérsia, que sempre termina onde começa. Seus adversários queriam nos devolver ao tempo da Saquifa (2) e lá permanecer; queriam que nos preparássemos e nos armássemos de novo para as batalhas de Jamal e de Siffin (3), enquanto o Sayyed queria que olhássemos à frente, nos preparássemos para o futuro com o rigor da ciência, da mente e a sabedoria da fé. Sua resposta foi fazer uma prece por eles, para que Deus os perdoasse, pois ele os perdoava. O Sayyed os derrotou com o seu silêncio e os silenciou pelo seu perdão. Ele os deixou sentados no fundo do poço da história e seguiu, deixando-os ressentidos. Ele seguiu, deixando-os com seu discurso vazio e completou o seu caminho…

Ele queria a renovação, mas teve o cuidado quanto ao impedimento e o conflito. Ele agiu para desmantelá-lo por dentro e passou a consolidar, com tranquilidade, uma nova ordem prevalecente. Manter um equilíbrio entre os componentes da consciência foi para ele o desafio mais difícil, porque lhe garantiu toda a capacidade de comunicação, com todos os segmentos, influenciando-os, preservando a presença e o papel de cada um sem anular a presença e o papel dos demais.

O Sayyed cancelou o dualismo da religião e da mente e aterrou o fosso entre a religião e a ciência. A ciência é a autoridade final em todos os acontecimentos e manifestações do universo. Ela é a prova da religião, de modo regular. Da mesma forma, a religião é a dona da última palavra em iluminar a escuridão da alma e a guia e o mentor da ciência na formulação de metas e objetivos. O Sayyed recusou definitivamente fornecer qualquer texto religioso sobre as conquistas da ciência. O mês do Ramadã (4) para ele era uma atividade astronômica, da mesma forma que é uma estação para os alimentos e uma sublimidade para o espírito. A dedução para ele era uma forma de descobrimento do milagre da Criação e não a negação do Criador ou a manipulação de Suas regras.

O Sayyed saiu do discurso de comparação entre o Islã e o Ocidente e trabalhou para que o Ocidente fosse um espaço propício para divulgar o Islã, que este fosse absorvido no sistema ocidental, assim como quis que os muçulmanos digerissem o Ocidente e se relacionassem com as suas conquistas positivas. Em nenhum momento falou sobre a invasão cultural do Ocidente, porque incluiria o reconhecimento da derrota, da fraqueza e da vulnerabilidade, mas falou sobre o relacionamento baseado na força de vontade, sem amplificação ou diminuição do seu potencial. Procurou um relacionamento transparente, com a troca de experiências com o Ocidente: “Tragam o que vocês têm que terão surpresa com o que temos”.

O que mais perturbava o Sayyed e aos outros é que o ijtihad (a diligência) (5) religioso se transformasse em imitações estáticas, com as quais se obtivessem sempre os mesmos resultados. O ijtihad, para ele, é um retorno à pesquisa e ao debate desde o início, sem reconciliações, concorrência, busca de fama ou consenso. Ele empreendeu o seu extremo esforço para redirecionar o sentido do Texto Sagrado, entender o seu significado e descobrir o seu propósito. Trata-se de alguma forma de comportamento de protesto, com tendência científica de se rebelar contra o que é prevalecente e familiar, bem como eficácia presente e liberdade de pensamento. Em consideração aos caprichos dos antecessores, a diligência é uma tendência a ser relatada e uma percepção sobre apreensões de sutis projeções dissimuladas de santidade.

O Sayyed distinguiu entre o que conhecemos de leis e significados religiosos, de um lado, e o que o texto religioso quer dizer e o que “Deus e Seu Mensageiro” realmente desejam, do outro. Ele trabalhou para retirar os acréscimos, individuais e coletivos, que são acrescidos ao texto e são aplicados a ele, por vários pretextos, tais como fama, unanimidade e costumes idiossincráticos, tornando-os elementos pertencentes ao texto. Assim, modifica, em seguida, sem visão, os efeitos do texto e o recebimento das suas utilidades originais. Por isso, o Sayyed causou espécie com algumas de suas inúmeras sentenças. Se não fossem as agressivas e maldosas campanhas contra a sua pessoa, teríamos ouvido muito dele e teríamos visto o que nos surpreenderia ainda mais.

O Sayyed quis que a ideia de pertencer à Escola Xiita fosse afastada da falsa imagem do fanatismo. Era-lhe penoso tornar o Xiismo como as outras seitas, uma configuração fechada, dominada pelas relações tribais, controlada por uma minoria de mente concebida pelo regionalismo. O Xiismo não é uma identidade que se herda dos pais; é uma convicção aliada ao comprometimento de atitudes, de disciplinas morais e de sublime senso humano. O Xiismo tem uma maneira de viver e de pensar e uma linha de liberdade só usufruída por quem o aceita voluntariamente e resolve seguir as suas exigências.

O Sayyed não precisou recorrer às listas de certificados com a sua diligência e elegibilidade para ser referência. Não agiu a fim de auferir o reconhecimento de sua referência. Ela foi uma sequência natural de sua base científica, de seu particular bom gosto de jurisprudente. A referência foi ter com o Sayyed, e encontrou-se com ele, porque ele lhe deu o que a afastou da monotonia, da estagnação e do personalismo. Ele lhe proporcionou um discurso que liberou a sua esfera de influência humanitária e global e acrescentou-lhe de seu particular sabor, fazendo-a vibrar novamente com tudo o que é corajoso, tornando o seu processo jurídico prático uma fonte fácil, que fez com que as pessoas gostassem de adorar a Deus.

O Sayyed indicou em seus primeiros escritos, especialmente no seu livro: “O Método da Convocação no Alcorão”, que o Estado Islâmico é fundamental não porque visa para si, mas pelo que proporciona realmente, pelos progressos na divulgação e na defesa dos valores da religião. O Estado Islâmico não se constitui de estruturas e sistemas de autoridade e disposições; é algo que tem de viver em nossos corações e experimentamos em nossa vida, é algo refletido em nosso comportamento.

Assim, ele alertou quanto ao perigo da transformação do meio no fim e de sermos reféns das autoridades que atuam de forma invisível e sem a nossa vontade ou consciência. Que devemos seguir os valores da religião para organizarmos os interesses que se formam com cada nova autoridade, transformando os princípios da religião em regras ao seu redor de quem domina o governo. O Sayyed confirmou que o Islã não precisa de uma autoridade em particular que o proteja ou de arranjo político para ser aplicado. Ele está apto a ser vivido inteiramente em qualquer lugar, porque possui a flexibilidade doutrinária e alta capacidade de absorver e de se adaptar a qualquer circunstância ou situação.

O Sayyed viveu como opositor e revolucionário, que aspira estabelecer um estado de justiça, sem esquecer as complexidades da realidade ou transcendê-las. Ele acompanhou a Revolução Islâmica no Irã e deu seu apoio para defendê-la, sem preocupar-se em agradecimento ou a gratitude de alguém. O apoio do Sayyed à Revolução concentrou-se no aconselhamento e no aviso quanto aos perigos que a rondavam. Ele estava assustado com a corrida irracional à ideia da Revolução, que começou a produzir imagens de lealdade enorme, obediência absoluta e subordinação completa, mesmo no pensamento e na cultura, e a promover a realização de “culto cultural”, o que significa a abolição da mente sob o pretexto de adoração a Deus. O Sayyed, nos anos oitenta do século passado, publicou “Reflexões Sobre o Processo de Trabalho e os Trabalhadores”, repleto de alertas para corrigir o passo da Revolução e advertiu fortemente quanto à transição da “anulação da linha”, ou seja, a obediência incondicional ao comando, por representar efetivamente os valores da religião, para a “linha de anulação”, ou seja, a personificação da lealdade ao comandante e sua transformação em um ponto central independente, que compete com a base em que foi estabelecido o estado da Revolução.

Em tempo de proliferação de atitudes de entusiasmo para transformar o mandato do jurista em princípio da transcendência ideológica acima da investigação e da análise, depois de ter sido, basicamente, uma questão de apreciação, o Sayyed via que a importância não está na capacidade ou incapacidade do jurista, mas depende do bom gosto de jurista, das circunstâncias do tempo e do local do processo de ijtihad. A importância está na continuidade da diligência, sua persistência e proteção, como uma estrutura fixa para a produção de todas as declarações de jurisprudência. Orgulhar-se de qualquer ideia, emocionalmente, e trabalhar para santificá-la são atitudes que se impõem ao resto das idéias e nos levam, gradualmente, a fechar a porta do ijtihad, transformando a atividade de reflexão, análise, comprovação e crítica em atividade de controle sobre uma lista de disposições quanto à incredulidade ou ao disciplinamento do opositor.

NOTA:

(1) I.é, o Profeta Mohammad (S) (NE).
(2) Edificação coberta sob o qual alguns muçulmanos prestaram juramento a Abu Bakr como sucessor do Profeta Mohammad (S), quando este faleceu, revogando a nomeação do Imam Ali (a.s.), feita pelo próprio Profeta quando ainda em vida (NE).
(3) Refere-se o autor a batalhas nos primórdios do Islã, que opuseram os seguidores do Imam Ali (a.s.) e dos demais califas (NE).
(4) O 9º mês do calendário lunar islâmico, durante o qual, por 30 dias, os muçulmanos fazem jejum entre o nascer e o pôr do sol (NE).
(5) I.é, o “raciocínio independente” usado por um jurista ao aplicar a Shari’a (ou legislação islâmica) a circunstâncias contemporâneas (NE).

OLHOS:

“Era-lhe suficiente que estivesse lá, conversando e recebendo pessoas, anunciando uma posição ou emitindo um parecer consultivo”
“Na sua visão havia um mundo amplo, um horizonte acolhedor repleto de cores, convidando-nos a estar nele, como somos, sem a necessidade de alteração”
“O cristianismo penetrou, por intermédio do Sayyed, no recinto da fé dos muçulmanos, a partir de uma ampla porta aberta, em parceria de fé”
“Se estivesse de acordo ou discordasse do Sayyed, você continuava sob o seu manto e caminhava sob a sua proteção, sem precisar de um passaporte ou uma senha para entrar”
“A ciência é a autoridade final em todos os acontecimentos e manifestações do universo. Ela é a prova da religião, de modo regular”
“O Sayyed alertou quanto ao perigo da transformação do meio no fim e de sermos reféns das autoridades que atuam de forma invisível e sem a nossa vontade ou consciência”

 

 

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