A história do wahhabismo: do deserto de Néjede ao Reino da Arábia Saudita

O wahhabismo é um movimento religioso sunita associado com os ensinamentos de Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703 – 1792). Os seus adeptos, contudo, se autoproclamam salafis, isto é, aqueles que seguem o caminho da primeira geração de muçulmanos (salaf). A estruturação desta reforma está intimamente associada com a história da Arábia Saudita e com o seu expansionismo. Ademais, também é possível remeter grande parte do fundamentalismo islâmico atual à cosmovisão wahhabita. A nova leitura dado ao Corão e aos Ahadith (ditos do Profeta Muhammad) permitiu uma radical transformação em pontos fundamentais do islamismo e possibilitou, pela primeira vez, a desagregação da comunidade sunita.

A “mística” wahhabita está completamente associada ao combate à idolatria (shirk). No islamismo de então era comum encontrar veneração aos santos e outras manifestações de piedade, como a visitação de mausoléus, peregrinações a lugares sagrados etc. Hoje estes costumes sobrevivem apenas entre os adeptos do sufismo e no islã xiita. Em grande medida o fim destes atos de devoção é reflexo do fortalecimento do discurso reformista em todo o mundo islâmico. Para Abd al-Wahhab a identidade muçulmana do fiel não estava pautada na profissão de fé (shahada), mas sim na correta manifestação da sua adoração, como a expressão da crença no Deus Único. Para o reformador árabe, a verdadeira crença subsistia apenas entre aqueles que combatiam a idolatria. Consequentemente, grande parte da comunidade islâmica era vista pelo wahhabismo como apóstata necessitada de purificação.

As origens espirituais do wahhabismo se encontram nos ensinamentos de Ibn Taymiyyah (1263 – 1328), pensador de origem turca e que se tornou um célebre pregador na Síria. Ulemá da Escola Hanbali1, atingiu a estatura religiosa de “Mujtahid”, ou seja, clérigo capaz de gerar um veredito independente a respeito de aspectos da jurisprudência islâmica. Na busca pela renovação do islamismo, Ibn Taymiyyah se levantou contra a visita de túmulos e a veneração dos santos. Ainda considerando estas práticas idolátricas, dizia-se incapaz de conhecer a validade das intenções dos muçulmanos, portanto impossibilitado de julgar a credulidade individual. Contudo, o mesmo equilíbrio não foi utilizado no trato dado aos xiitas e aos sufis, que se tornaram desde então inimigos clássicos do que considerava a ortodoxia islâmica. Na busca por determinar o que era o islamismo “puro”, Ibn Taymiyyah passou a referir aos seus seguidores como “salafis”, em referência aos companheiros do Profeta Muhammad. Com o sistemático distanciamento do pensamento ordinário Hanbali, o salafismo se tornou numa subcorrente dentro desta escola de jurisprudência.

Ainda que Muhammad ibn Abd al-Wahhab, séculos depois, tenha se tornado no aclamado ulemá do wahhabismo, ele vinha de uma remota localidade onde a tradição intelectual era profundamente rasa. O Néjede, região central da península arábica, durante séculos viveu isolado politicamente, desde o fim do Califado Abássida. Os Otomanos, que controlavam o Oriente Médio, não tinham razões para invadi-lo e subjugá-lo. Não tinha importância econômica e não possuía uma posição estratégica. Religiosamente o Néjede era diverso, com diversas escolas sunitas de jurisprudência e tendo alguma influência xiita, devido aos peregrinos vindos do Iraque, do Irã e do Bahrein que inevitavelmente passavam pela região.

As idéias do Sheikh Muhammad, ao que tudo indica, surgiram quando de sua viagem para Bassora, em 1730. A cidade no sul do atual Iraque vivia sob constante tensão devido ao atrito entre Otomanos e Persas, com o risco iminente de invasão. Como uma região de maioria xiita, provavelmente Abd al-Wahhab se impactou com a veneração dos seus fiéis aos imames. Em Bassora iniciou a sua pregação contra as inovações (bid’a) e contra os cultos corrompidos ao Deus Único.  Também foi neste período que Sheikh Muhammad teria recebido a iluminação divina que possibilitou o conhecimento mais profundo da unicidade, condensado no seu livro “Kitab Al-Tawhid”. Ainda sendo perceptível um discurso próximo ao ensinado por Ibn Taymiyyah, o reformador árabe realiza uma mudança radical de perspectiva.

O modo obscuro com o qual Sheikh Muhammad interpretava alguns ahadith e passagens corânicas endossou as bases da sua reforma. O Profeta Muhammad, numa tradição transmitida oralmente, disse: “Quem quer que afirme que não há deus além de Deus e renega todos os outros objetos de culto, salvaguarda o seu sangue, a sua propriedade e a sua fé em Deus”. Para  al-Wahhab este dito era um aclaramento a respeito da imperfeição da profissão de fé nominal. Apenas a renegação daquilo que considerava idolatria poderia conceder ao fiel muçulmano a sua pertença à comunidade e, portanto, a sua proteção legal. O problema oriundo desta leitura era que os crentes, em sua maioria, buscavam a intercessão de homens santos e construíam santuários sobre os seus túmulos. Com isto toda a península arábica estava enquadrada como apóstata. Este contexto fortaleceu ainda mais a imagem de Sheikh Muhammad como o novo opositor à ignorância religiosa (jahiliyya) na região, depois do Profeta do Islã. Os paralelos criados entre a história de al-Wahhab e Maomé, pelos adeptos do wahhabismo, foram inúmeros.

Sheikh Muhammad necessitava de suporte político para difundir as suas novas idéias, contudo, sequer encontrava apoio na própria família. Seu pai não endossava os seus ensinamentos e o seu irmão se tornou no seu maior crítico. Após um breve período de aliança com um chefe tribal, onde pode colocar em prática os métodos wahhabitas – destruiu a tumba de Zayd ibn al Khattab, companheiro do Profeta, e permitiu o apedrejamento de uma mulher – al-Wahhab partiu depois de ser derrotado pelos ulemás que o combatiam duramente. Em 1744 ele conhece al-Dir’iyya (atualmente na periferia de Ryad), um oásis governado pelo clã conhecido como Al-Muqrin, mas que depois se tornou famoso como Al-Saud.  O ardor missionário de Sheikh Muhammad contagiou os governantes, mas especialmente o seu ensinamento que tornava lícita a guerra santa contra muçulmanos. Muhammad ibn Saud se apresentou como a força para combater a descrença e a idolatria. A aliança Saud-Wahhab possibilitou que pela primeira vez desde o surgimento do Profeta Muhammad grande parte da península arábica se unificasse sob uma mesma interpretação do islã.

Para o Sheikh Muhammad a comunidade islâmica viveu seis séculos na ignorância da unicidade de Deus e na degeneração da revelação transmitida pelo Profeta do Islã. De certa forma o wahhabismo adotava o mesmo discurso do protestantismo quando do seu surgimento no séc. XVI. Muitos foram os ulemás que se levantaram contra al-Wahhab, contudo, a forte oposição do seu irmão foi o mais eloquente ataque ao wahhabismo. Sulayman ibn Abd al-Wahhab o acusava de realizar juízos legais de modo independente (ijtihad), o que não mais era permitido no sunismo desde o séc. X. Ademais, transformava infidelidades consideradas pelo consenso islâmico como “idolatria menor” em apostasia. Sheikh Sulayman ainda destacou que por mais que alguém seja acusado de “idolatria maior”, crime passível de morte, deve ser advertido pelos clérigos para que tome conhecimento da própria condição, evitando juízos precipitados sobre aqueles que estão na ignorância. Com a banalização do “takfir” (prática da excomunhão) entre os wahhabitas, e baseado em nenhuma justificativa a não ser as acusações infundadas de idolatria, Sheikh Muhammad divide a comunidade islâmica. Seu irmão, numa afirmação contundente, afirma que o wahhabismo trilha o mesmo caminho extraviado do kharijismo, o primeiro cisma da história muçulmana.

O debate entre os dois irmãos foi silenciado pela conquista saudita do oásis de Huraymila, em 1755, obrigando Sulayman a partir em fuga depois que foi julgado  pelo seu irmão como “inimigo de religião”. Mais tarde seria capturado e enviado para Ryad, onde morreria na prisão. O êxito da expansão saudita despertou a preocupação dos Otomanos, que até então escutavam com pouco interesse as pregações de al-Wahhab. Como parte dos seus ensinamentos, a “jihad” contra os apóstatas da península arábica era uma obrigação religiosa. Desde que os muçulmanos começaram a cultuar os mortos e os objetos sagrados perderam a salvaguarda e se tornaram em incrédulos. Antes de organizar um ataque era enviado um convite à conversão ao islã, o que obviamente era recebido de modo presunçoso pelos habitantes das cidades, que já eram crentes. Com a tomada dos povoados, os prisioneiros deveriam abraçar o islamismo wahhabita. Aqueles que aderiam ao pensamento reformado ficavam livres mediante o pagamento da taxa de proteção (aplicada aos cristãos e aos judeus). Caso recusassem, todos eram mortos e as mulheres escravizadas.

Com o estado saudita atingindo as fronteiras do Império Otomano, Istambul iniciou uma dura batalha contra o wahhabismo, primeiramente no plano religioso, através de ulemás, e posteriormente com as intervenções militares. Depois da tomada das Cidades Sagradas, em 1803, seguida do combate aos maus hábitos estabelecidos pelos turcos, os sauditas conseguiram construir uma boa imagem na comunidade islâmica, ainda que fora da península arábica apenas a corte do Sultão do Marrocos tenha mostrado interesse em suas pregações. Contudo, a destruição de tumbas e mesquitas despertou a revolta em diversos pontos. Nesta mesma época os ensinamentos wahhabitas foram ainda mais radicalizados, com a proibição de viagens aos países incrédulos, ou seja, todos os existentes, e com a afirmação de que aqueles que conviviam com infiéis se tornavam também infiéis. Buscando retomar o controle do Hijaz, uma incursão foi liderada por Muhammad Ali, modernizador da província do Egito e com aspirações dinásticas. Na visão de Sulayman ibn Abdallah, neto de al-Wahhab2, o embate com os Otomanos era a luta dos crentes contra os descrentes, do monoteísmo contra a idolatria. Num ataque encabeçado por Ibrahim Pasha, filho de Muhammad Ali, o líder saudita, Amir Abdallah ibn Saud, rendeu-se no dia 11 de setembro de 1818. Os antigos líderes tribais foram recolocados no poder. A capital, al-Dir’iyya, foi completamente destruída. Os sobreviventes da família Al-Saud e Al ash-Sheikh foram deportados para o Egito.

Aos olhos dos otomanos, dos europeus e dos próprios beduínos árabes, parecia o fim do estado saudita e do movimento wahhabita. Contudo, incapaz de consolidar o poder na região, os egípcios partiram, abrindo o caminho para a restauração. O Segundo Estado Saudita, o Emirado do Néjede, durou apenas três gerações e implodiu depois da divisão interna na Casa Saud e com tomada de Ryad, em 1891, pelo Emirado de Al-Rasheed, uma antiga província. Contudo, a relevância dos Ibn Saud na região era incontestável e algumas décadas mais tarde, em 1902, Abdul Aziz ibn Saud retomaria o controle de Ryad. Em 1921 ele cria o Sultanato do Néjede, em 1925, com a invasão do Hijaz, surge o Reino do Néjede e do Hijaz e em 1932 nasce a Arábia Saudita. O wahhabismo já estava consolidado há mais de um século como a corrente religiosa oficial do deserto e com o advento do reino saudita se estabeleceu no poder, estreitando a relação entre a Casa Saud e a Casa do Sheikh através do casamento de Abdul Aziz com Tarfah bint Abdullah Al Ash-Sheikh, filha de Abd Allah ibn Abd al-Latif Al ash-Sheikh, líder da missão wahhabita em seu tempo. Desta união nasceu Faisal bin Abdulaziz Al Saud, futuro rei saudita. A partir de então os ulemás wahhabitas iniciam o processo de internacionalização dos seus ensinamentos, patrocinados pelos príncipes, e começam a devastação cultural e religiosa na península, destruindo igrejas, sinagogas, mesquitas, tumbas etc. Ademais, neste cenário entra um terceiro e novo fator que se tornará fundamental para o entendimento do wahhabismo moderno: o Ocidente.

Isso será análise de um próximo artigo.

1 – Madhahib são correntes sunitas de interpretação da jurisprudência  (fiqh). Todas surgiram no período de consolidação do pensamento islâmico, fundadas entre o séc. VIII e IX. As quatro grandes escolas são: Hanafi, fundada por Abu Hanifa, Maliki, fundada por Malik ibn Anas, Shafi’i, fundada por Abu Abdullah ash-Shafi’i, e Hambali, fundada por Ahmad ibn Hanbal. Não podem ser consideradas seitas e nem divisões internas. Todos os sunitas partilham da mesma doutrina, com diferenças apenas de caráter legislativo ou ritualístico a depender da escola.

2 – Os descendentes de Sheikh Muhammad, que adotaram o sobrenome de Al ash-Sheikh (Casa do Sheikh), exerceram um papel central na propagação do wahhabismo e no expansionismo saudita. Na Arábia Saudita moderna ainda figuram, depois da Casa Saud, como uma importante família no governo do reino. Entre os seus membros atuais estão Abdul-Aziz ibn Abdullah Al ash-Sheikh, Grande Mufti da Arábia Saudita, Saleh bin Abdul-Aziz Al ash-Sheikh, Ministro de Assuntos Islâmicos, e Abdullah ibn Muhammad Al ash-Sheikh, presidente da Assembleia Consultativa.

Um artigo do blog Islamidades.

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