A Dimensão da Religiosidade

Por: Ahmed Ismail

Mais do que os aspectos externos e as várias concepções da fé, sobretudo o que distingue as tradições religiosas do mundo são as diferentes formas em que a dimensão da espiritualidade é compreendida. Em qualquer tradição religiosa, a relação entre o homem e a dimensão do sagrado se estabelece sobre certos fundamentos de fé e prática, e estes por sua vez, traduzem uma concepção de religiosidade. É esta concepção de religiosidade que na verdade define os aspectos exteriores de culto, e portanto, é possível compreender a razão básica das múltiplas formas de culto e de crenças a partir desta diferente concepção de religiosidade ou diferente relação com a dimensão da religiosidade.

Ao nos limitarmos apenas as tradições monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) perceberemos que fundamentalmente o que as distingue é apenas e tão somente “esta diferente concepção da dimensão da religiosidade”. Como sabemos, estas três tradições religiosas (tal como são entendidas), na verdade, não são distintas. O Alcorão não as classifica como “religiões distintas”, mas sim, (quando se refere aos seguidores dos livros anteriores), como duas “posições cismáticas” ligadas por uma mesma “VERDADE OU SENDA REVELADA” da qual teriam se afastado por desvios de âmbito teológico. Ou seja, em algum ponto houve uma ruptura, primeiro dos judeus em relação a “MENSAGEM DIVINA” que tinham recebido de Moisés (as), em seguida uma segunda “ruptura” esta dos que haviam acreditado em Jesus (as), em relação a MENSAGEM DIVINA por ele anunciada.

Estas rupturas podem ser entendidas como “mudanças” da concepção original da religiosidade, da própria relação com a dimensão da fé. O Alcorão identifica estas rupturas como sendo o resultado da adoção de concepções humanas, que reinterpretavam ou distorciam a Palavra divinamente Revelada. Em diversas passagens do Livro Sagrado isto é detalhado e são demonstradas todas as razões que produziram tal estado de coisas.

O Alcorão textualmente denuncia os abusos e as transgressões dos sacerdotes e sábios judeus e cristãos, que manipularam seus textos sagrados de modo a forjar distorções e desviar o povo da Senda Divina, anunciada pelos profetas e mensageiros. Com isso, de modo objetivo, não se pode dizer que as atuais distintas concepções de religiosidade existentes no profetismo monoteísta signifiquem distintas “religiões”. Antes, tais diferentes concepções de religiosidade e fé, uma vez que podem ser identificadas como divergentes da crença e da doutrina originalmente revelada, são o produto de inovações introduzidas ou desenvolvidas no decorrer do tempo. É de modo indiscutível que o Alcorão expõe este fato nos seguintes ayát sagrados:

“DISSERAM: SEDE JUDEUS OU CRISTÃOS, QUE ESTAREIS BEM ILUMINADOS. RESPONDE-LHES: QUAL! SEGUIMOS O CREDO DE ABRAÃO, O MONOTEÍSTA, QUE JAMAIS SE CONTOU ENTRE OS POLITEÍSTAS”.

Claramente, é feita uma perfeita distinção entre a fé e a religião de Abraão (as), (seguida e predicada por Moisés, Jesus, Mohammad e por todos os demais profetas) e a fé e a práticas religiosas tanto dos judeus como dos cristãos. A reivindicação destes sobre sua fidelidade ás revelações sagradas é refutada pelo Alcorão que os classifica de “politeístas” com o seguinte ayat sagrado:

“TOMARAM POR SENHORES SEUS RABINOS E SEUS MONGES EM VEZ DE ALLAH, ASSIM COMO FIZERAM COM O MESSIAS, FILHO DE MARIA, QUANDO NÃO LHES FOI ORDENADO ADORAR SENÃO A UM SÓ DEUS…” (S. 9 – V. 31)

O versículo acima demonstra um ponto decisivo neste processo de modificação da crença e das práticas originais e autenticamente reveladas aos Profetas (as): a crescente influência dos sacerdotes e sábios que pouco a pouco se tornaram os “proprietários do conhecimento religioso” e fizeram uso desta influência sobre o povo para manipular e adulterar a Lei divina.

Na verdade, duas foram as motivações que causaram este processo:

1. A intenção de criar privilégios e assegurar o domínio do clero sobre o povo.
2. Introduzir concessões e adotar práticas e crenças que se conformassem as inclinações, as paixões e os caprichos dos homens.

Com referência à primeira motivação, diz o Alcorão:

“… DETURPAM AS PALAVRAS DE ACORDO COM A SUA CONVENIÊNCIA…” (S.5 – V. 41)

E com referência a segunda:

“SUCEDEU-LHES UMA GERAÇÃO QUE HERDOU O LIVRO, A QUAL ESCOLHEU AS FUTILIDADES DESTE MUNDO, DIZENDO: ISTO NOS SERÁ PERDOADO! E SE LHES FOSSE OFERECIDO OUTRO IGUAL, TE-LO-IAM RECEBIDO (E TRANSGREDIDO NOVAMENTE). ACASO, NÃO LHES HAVIA SIDO IMPOSTA A OBRIGAÇÃO ESTIPULADA NO LIVRO DE NÃO DIZER DE DEUS MAIS QUE A VERDADE?” (S.7 – V. 169)

E a raiz deste mal é especificada no seguinte versículo:

“HAVÍAMOS ACEITO O COMPROMISSO DOS ISRAELITAS E LHES ENVIAMOS MENSAGEIROS. MAS CADA VEZ QUE UM MENSAGEIRO LHES ANUNCIAVA ALGO QUE NÃO SATISFAZIA SEUS INTERESSES, DESMENTIAM UNS E ASSASSINAVAM OUTROS”. (S.5 – V.70)

O que se depreende do que relatam estes versículos é que uma sistemática rebeldia agiu criminosamente na deturpação da religiosidade original trazida pelos profetas (as). Esta rebeldia levou os judeus a rejeitarem o Messias (as), que tinha uma missão específica de convocá-los a um retorno à Religião original de Abraão (as) e de Moisés (as). Este mesmo processo de corrupção e extravio foi reproduzido nos séculos seguintes no seio da cristandade, no qual as mesmas motivações acima expostas se manifestaram pelo surgimento de uma classe clerical que tomou para si uma “pretensa autoridade sobre a verdade” (com uma conseqüente adulteração das escrituras ou mesmo a “fabricação de escrituras”) e pela adoção gradativa dos costumes e crenças pagãs que correspondiam aos interesses e as paixões dos homens.

Essas duas posições cismáticas, que devem mais propriamente ser denominadas de tradição judaica e tradição cristã sofreram um processo de transformação inevitável no decorrer da história quanto à sua concepção de religiosidade, muito embora isso tenha ocorrido de modo diverso numa e noutra tradição.

A tradição religiosa judaica, como vimos, desde os primeiros tempos sofreu a nefasta influência dos maus sacerdotes que por motivações espúrias, entregaram-se a manipulação das escrituras sagradas, e por isso, se tornaram os principais opositores de vários dos profetas que sucederam Moisés (as). O imediato desdobramento disso foram as sucessivas ondas de decadência moral e religiosa que levaram o povo de Israel a sofrer duras vicissitudes sob o jugo de dominadores.

A conseqüência mais lamentável desse processo, foi o surgimento de um pensamento religioso que traía os propósitos divinos da Revelação: o pensamento nacionalista que interpretava a nação de Israel como algo divino, superior a todas as demais nações e por isso mesmo, destinada a “exercer domínio sobre todos os povos”.

Por séculos os escribas e sacerdotes se entregaram à criminosa ação de “imprimir” nas escrituras este espírito nacionalista, que diminuía a Mensagem Divina a um suposto monopólio de Israel sobre os favores de Deus. As condições estabelecidas quando da aliança de Isaac (as) foram esquecidas, relegadas em nome do orgulho racial que passou a ser a orientação de fé e prática de uma parte significativa dos sacerdotes e escribas e que por intermédio disso, corromperam a religião.

Era exatamente este o estado de coisas predominante no tempo de Jesus (as). A lei divina era aplicada segundo o interesse e as conveniências dos sacerdotes e escribas. Diversas seitas haviam surgido em virtude das distorções e dos desvios, dentre estas, como conseqüência do processo de afastamento da verdade, havia os essênios, que se isolaram da sociedade habitando nas montanhas e nos desertos na tentativa de resgatar a fé e a prática tal como havia sido predicada pelos profetas patriarcas.

A violenta rejeição a Jesus (as) e a sua mensagem redentora, teve como principal razão a sua determinada palavra de denúncia a respeito das adulterações perpetradas pelos sacerdotes e escribas. Jesus (as) combateu a hipocrisia e a farsa daquele pensamento nacionalista que havia tomado a consciência do povo judeu. Vemos nos evangelhos canônicos uma sucessão de debates teológicos entre o Messias (as) e os fariseus e escribas que demonstram a distância de sua Mensagem daquilo que havia se tornado “o pensamento e a prática religiosa dos judeus”.

Cegos por um orgulho exclusivista no qual se consagravam “como o povo de Deus, os filhos verdadeiros de Abraão” haviam se tornado arrogantes, hipócritas, avarentos, obtusos e traiçoeiros. Apenas uma parte do povo comum, homens e mulheres que ainda buscavam a fidelidade a Deus, acreditaram em Jesus (as) e em sua missão. Quando de sua partida deste mundo, estes passaram a constituir uma comunidade que nos primeiros tempos veio a ser conhecida como “os nazarenos”.

A tradição judaica permaneceu envolvida nas mesmas distorções em seu pensamento religioso. Sob o argumento do fundamento da lei de Moisés (as), muito embora o que determinasse a fé e a prática fosse o “pensamento e a palavra dos sábios”, de tal modo que os livros de comentários sobre a lei possuíam quase o mesmo peso das escrituras na ortodoxia judaica. O pensamento nacionalista que reinterpretou o messianismo como o “advento do domínio sobre as nações” tornou-se a alma da concepção de religiosidade do judaísmo. Daí em diante mais e mais a fragmentação em seitas e o conseqüente secularismo se estabeleceu.

Na atualidade, a tradição religiosa judaica tornou-se um mero elo da identidade do judeu, um traço do nacionalismo judeu (muito bem explorado pelo sionismo, este, um movimento laico). O estado de Israel hoje reflete esta realidade: com a exceção de uma minoria praticante centrada na tradição religiosa, a grande maioria dos judeus o são mais por sua origem e possuem traços culturais bem diversos, estilo de vida claramente ocidental, no qual a religiosidade não ocupa uma posição decisiva.

Do Cristianismo Primitivo à concepção de Religiosidade Cristã Moderna

O que passou a ser conhecida como “cristandade” ou tradição cristã, surgiu e se manteve em seu primeiro período como uma mera “cisão” ou secto, formada por judeus, que se distinguiam dos demais apenas pela aceitação de Jesus (as) e da mensagem a ele revelada. Afirmar isso nos dias de hoje é estranhamente necessário, visto que as sucessivas transformações ocorridas na cristandade através dos séculos e em especial “em sua concepção de religiosidade” tornaram sua perspectiva inicial tão distante da atual quanto está no tempo em relação a nossa época.

As que podem ser identificadas propriamente como “primeiras comunidades cristãs” (anteriores a Paulo e seus seguidores) segundo o pouco material histórico que chegou até nossos dias possuíam de modo indiscutível uma concepção de religiosidade e uma relação com a dimensão da divindade muito próximas da tradição judaica e portanto, centrada num literal Monoteísmo. Esses pequenos grupos, denominados de Nazarenos, apresentavam inclusive o mesmo caráter de secto fundamentado numa tradição oral e numa certa afinidade de crença (de maneira similar aos sectos judeus) sem que tivessem qualquer pretensão de tornar-se uma Nova Religião ou formar uma organização ou igreja tal como nós conhecemos.

A entrada de Paulo no cenário da história marcou uma ruptura conceitual, teológica e prática. Com sua reinterpretação da doutrina de Jesus (as) Paulo fez com que surgisse no seio da cristandade um inédito senso de “organização” e um claro propósito de afirmação de uma “nova religião”.

Esta nova tendência tornou-se majoritária a partir da década de 70 d.c. e com a crescente aderência gentílica o processo de ruptura e de transformação dos conceitos originais se desencadeou. O pensamento gentílico foi se afirmando enquanto ao mesmo tempo uma sistemática rejeição da tradição judaica se fortalecia. Paulo, evidentemente, foi o precursor desta ruptura. Ele usou todo seu carisma pessoal para desvincular a mensagem de Jesus (as) de sua fonte original. De modo consciente ou não, Paulo não distinguiu as distorções operadas pelos sacerdotes e escribas dos fundamentos divinos dos Profetas (as), sobre os quais toda a doutrina de Jesus (as) se baseava.

Nos séculos seguintes, em meio a amargas discórdias e debates a cristandade sofreu transformações profundas em suas concepções de fé e religiosidade. Os concílios do séc. III e IV redefiniram um novo cristianismo: flagrantemente influenciado pelo pensamento grego, acrescido de uma imensa gama de rituais e crenças de origem pagã. Como religião oficial do império Romano o cristianismo já tinha muito pouco de sua forma original, havia se transformado num poderoso elemento na constituição do poder terreno da época.

Foi este neo-cristianismo, ocidental, e portanto, desvinculado de sua origem, suscetível ao poder do Clero romano (que promovia inovações de tempos em tempos) sobre o qual se edificou o que hoje conhecemos como tradição cristã moderna. Sucessivos embates teológicos e conceituais e razões políticas redundaram no cisma ortodoxo oriental em 1054.

Com o renascimento e a reforma protestante a crise do pensamento cristão se tornava ainda mais aguda, dogmas estabelecidos estavam sendo questionados de um modo inédito. O pensamento científico entrava em cena desmascarando uma boa parte das crenças forjadas pelo clero, enquanto o protestantismo também propugnava uma confrontação no campo teológico. Contudo, o movimento protestante estava fadado a reproduzir um novo conjunto de distorções, desde que se inspirava numa interpretação idealizada e literal dos textos canônicos, textos que, como sabemos, àquela altura já nada mais eram do que o resultado de sucessivas manipulações da palavra escrita.

Hoje, é muito difícil para um historiador sério e imparcial não concordar com as conclusões de grupos de pesquisadores como o “Seminário de Jesus”; o canadense John Dominic Crossan, um dos mais ativos integrantes deste grupo, diz: “Com a evolução dos mecanismos científicos de estudo das relíquias e provas históricas o mais certo é que, a cada ano, se vai provar que muito pouco da narração do Novo Testamento é confiável.” De qualquer maneira, o protestantismo acrescentou um certo número de elementos a concepção de religiosidade no mundo cristão. E isto se efetivou em um processo mais ou menos caótico em que a liberdade de “entendimento” das passagens bíblicas provocou uma explosão crescente de seitas, processo este que continua em ação numa vertiginosa sucessão de dissidências e “novas” doutrinas.

O secularismo e algo que pode ser denominado de “vulgarização da fé e da religiosidade” são dois desdobramentos naturais desse processo histórico. O que é perceptível nisso tudo é que a Igreja, que deve ser entendida aqui como a organização hierarquizada que se apoderou da tradição e da religiosidade já nos primeiros séculos, não só adulterou os fundamentos da fé monoteísta, e por conseguinte, a concepção original de religiosidade dos primeiros cristãos, como também em todas as épocas fez uso de todos os seus recursos e de sua influência para assimilar tudo aquilo que lhe parecesse útil, o protestantismo de certa forma apenas desfez o monopólio da Igreja de Roma nesta apropriação da Fé e da religiosidade.

Esta visão utilitarista é que nas últimas décadas tem promovido a vulgarização sistemática da fé, na qual as organizações religiosas cristãs mais parecem “empresas” administradas para dar lucros. Na ânsia de captar a fé das multidões, tais organizações se integram à cultura capitalista do culto a imagem, dos mega-eventos, e principalmente conformam a concepção de religiosidade aos mesmos ideais do individualismo capitalista e dos sonhos de consumo.

Uma outra estratégia deste processo de vulgarização da fé é a que está centrada na promessa de uma saída para o sofrimento humano. Uma saída imediata que sem dúvida atrai a massa em desespero; uma verdadeira indústria do milagre. Estas duas estratégias são sintomas mais ou menos previsíveis do sistema capitalista moderno e têm se firmado em substituição a uma muito mais antiga, historicamente ligada ao catolicismo que se volta a propagação dos cultos politeístas aos santos populares, uma face típica do obscurantismo religioso que tanto contribuiu para a opulência material e a própria sustentação da Igreja de Roma.

Na realidade, estas três modalidades de perversão da religiosidade, cada uma a seu modo, nada mais é do que IDOLATRIA e em absoluto representam a Fé e a concepção de religiosidade dos primeiros seguidores de Jesus (as), muito menos a MENSAGEM ORIGINAL por ele anunciada.

A Conclamação Alcorânica: O Retorno à Senda Original

A ênfase principal do Alcorão Sagrado a respeito dessa concepção de fé e religiosidade se define em seu evidente apelo à adoção da RELIGIÃO DE ABRAÃO(AS): o Monoteísmo em sua forma mais pura, perfeitamente detalhado e desenvolvido em todos os seus aspectos na Mensagem Final e definitiva Revelada ao Profeta Mohammad (saas).

O Alcorão frisa o fato de que todas as divergências e discrepâncias dos judeus e dos cristãos jamais tiveram lugar na prática e na fé dos profetas e mensageiros (as). Ao contrário de suas concepções discordantes e que são perfeitamente identificáveis (desde que a própria análise histórica aponta quando e como surgiram, logo, não pertencem a senda original) o Alcorão nos apresenta uma concepção de fé e religiosidade simples e direta, livre de amarras dogmáticas e de enigmas filosóficos.

Esta pura concepção de fé e religiosidade é estabelecida sobre uma relação direta entre a criatura e seu Criador, que de modo algum está condicionada a quaisquer “intermediários” e portanto liberta de qualquer influência do pensamento e da ação dos homens (o que explica a ausência de qualquer corpo clerical que possa reivindicar autoridade sobre a fé e a religiosidade dos humanos).

A onipotência, a onisciência e a onipresença de Allah é declarada literal e factualmnte, não é mera filosofia ou dogma .

Diz Allah no Alcorão:

“CRIAMOS O HOMEM E SABEMOS O QUE SUA ALMA LHE CONFIDENCIA, PORQUE ESTAMOS MAIS PERTO DELE DO QUE SUA ARTÉRIA JUGULAR.” (S.50 – V.16)

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